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RJ perde 48% das vagas para tratamento de câncer em unidades federais em 18 meses

15 de agosto de 2018

 

Pacientes que aguardam por consultas, cirurgias e terapias formam fila de 1 mil pessoas; após 6 meses, idoso morreu sem tratamento. Déficit é de 5,8 mil profissionais, segundo Defensoria.

 

O Rio de Janeiro perdeu, de janeiro de 2016 a 10 de agosto de 2018, 48% das vagas disponíveis para a primeira consulta oncológica na rede federal do Rio de Janeiro, principal responsável pelo tratamento de câncer na rede pública. É o que mostra um levantamento feito pela Defensoria Pública da União.

Segundo o estudo, as unidades têm um déficit de 5,8 mil funcionários. A fila de espera por consultas, cirurgias e tratamento soma mais de mil pessoas. Para alguns, como o aposentado Ricardo Batista de Souza, de 68 anos, a lentidão no processo é fatal.

Entre a consulta e o diagnóstico de câncer de pulmão, Souza levou mais de seis meses. No fim da tarde do último sábado (11), começou a passar mal. O Samu chegou a ser chamado, mas era tarde. Apesar dos esforços, a irmã dele, Sueli Souza, disse ao G1, pouco mais de 24 horas após o enterro do parente, que ele morreu sem conseguir se consultar com um oncologista e iniciar o tratamento.

“Ele estava quase conseguindo ser atendido (…) Parece que a gente não pode ficar mais doente.”

 

8 unidades

 

O levantamento da Defensoria se refere a seis hospitais e dois institutos: Hospital Federal de Bonsucesso, Hospital Federal do Andaraí, Hospital Federal Cardoso Fontes, Hospital Federal de Ipanema, Hospital Federal da Lagoa, Hospital Federal dos Servidores do Estado, Instituto Nacional do Câncer (Inca) e Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into).

De acordo com o defensor público Daniel Macedo, o Rio vive a pior crise na saúde desde 1988.

“O câncer exige um tratamento multidisciplinar e o caminho que o paciente faz passa pelo município, estado e União. Se houver uma falha nesse caminho, ele está fadado a agravar seu estado de saúde física e emocional.”

Uma paciente de 51 anos, que preferiu não ser identificada, foi encaminhada ao Hospital Federal da Lagoa ao ter o diagnóstico de câncer de mama após mamografia de rotina, em maio deste ano.

Na unidade, fez exames e foi para casa, aguardando uma ligação para uma cirurgia que aconteceria em junho. Mas o telefone nunca tocou. Ela voltou à unidade, onde a comunicaram de que mais de 20 outras mulheres estavam na fila para a mesma cirurgia.

“Disseram que vai demorar mais três meses. Mas quem tem câncer tem pressa. Meu nódulo era pequenininho. Não sentia no toque. Hoje em dia eu passo a mão e já sinto”, contou a paciente.

 

113 mil novos casos em 2018

De acordo com estimativas do Instituto Nacional do Câncer, o Rio de Janeiro deve registrar mais de 113 mil novos casos de câncer de mama em 2018. Leda Mazzoni, presidente da Associação Brasileira de Apoio aos Pacientes com Câncer (Abrapac), ONG associada à FEMAMA no Rio de Janeiro, destaca que o tratamento da neoplasia piorou no estado.

“É lastimável. Porque os pacientes não têm atendimento adequado. Eles marcam a mamografia, fazem a mamografia, detectam que têm um câncer, um tumor, marcam para fazer a biópsia. Aí demora cinco ou seis meses para fazer a cirurgia, ou seis, sete ou oito”, contou a presidente da Abrapac.

O presidente do Cremerj destacou a dificuldade do trabalho dos médicos. “É triste você perder um paciente que você fala assim: ‘nós poderíamos dar vida para ele'”, explicou Nelson Nahon.

 

Lei dos 60 dias

De acordo com a lei federal 12.732, de 2012, todos os pacientes com câncer têm direito de receber tratamento na rede pública de saúde que inicie em até, no máximo, 60 dias após a descoberta da doença. Segundo o relatório e todos os pacientes ouvidos pelo G1, a lei não é respeitada atualmente no estado.

 

Gélcio Mendes, médico oncologista e coordenador de assistência do Instituto Nacional do Câncer (Inca), a principal unidade de referência no tratamento do câncer no RJ, destaca que o cumprimento da lei também depende de uma boa assistência básica à população.

“A primeira dificuldade que nós temos é entre o paciente ser diagnosticado em outras unidades, na atenção básica, e ser encaminhado para o Inca. Isso tem um impacto no cumprimento dessa lei. Outra coisa é que aqui no Inca, os nossos tratamentos são complexos. Câncer é uma doença própria das pessoas mais idosas, então você volta e meia recebe pacientes com outros quadros clínicos que impedem o início imediato do tratamento. Dentro desse quadro de complexidade, a gente tenta a maior parte das vezes, a gente tenta atingir essa meta”, explicou Gelcio.

O desrespeito à lei que obriga o tratamento gerou um crescimento de 43,1%, de 2016 (51) para 2017 (73), no número de mandados expedidos em ações na Justiça para obter consultas e transferência. Até julho deste ano, haviam sido solicitados 39 mandados. Muitos deles, no entanto, não foram cumpridos.

 

Falta de médicos e superlotação

O caso mais grave é do Hospital Federal de Bonsucesso, na Zona Norte. Em uma vistoria realizada pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) no mês de julho na unidade, as equipes identificaram a falta de profissionais e de insumos, além da superlotação dos setores de Oncologia e da Emergência.

“O tratamento é interrompido, falta fio de sutura, a cirurgia é marcada e desmarcada na sequência por falta de roupa cirúrgica. Começa o ciclo de quimioterapia e ele é interrompido”, afirmou o defensor sobre alguns dos problemas encontrados.

Durante a visita, foi constatado que pelo menos nove pacientes estavam com o processo de quimioterapia suspenso, aguardando a chegada de rituximabe, medicamento usado no tratamento de linfomas. Também foi identificada a falta de dacarbazina, usada no tratamento de melanomas.

No total, pelo menos 47 medicamentos usados por pessoas que tratam câncer estavam com os estoques zerados ou críticos. O problema atinge também atinge outros tipos de medicamentos.

Segundo o documento, dependendo da especialidade, a possibilidade de recuperação para pacientes de câncer no Hospital Federal de Bonsucesso é de menos de 30%.

O Cremerj verificou também a falta de condições de trabalho para os médicos por causa da dificuldade na realização de exames como tomografia e cintilografia, que ajudam a determinar a extensão do tumor no organismo dos pacientes. Os profissionais ainda enfrentam demora para o início da radioterapia, processo que depende da regulação de vagas.

Há relatos de demora de até seis meses para a emissão de laudos de imunohistoquímica, causados pela irregularidade na disponibilidade de kits para a dosagem de marcadores tumorais para câncer de mama, colorretal, pâncreas, ovário e próstata.

Dos 54 pacientes internados na emergência, 20 apresentavam diagnóstico de algum tipo de câncer. O documento alerta que não há uma enfermaria oncológica.

“Os pacientes oncológicos são internados ao lado de pacientes com patologias diversas, inclusive de origem infecciosa, por exemplo, que podem prejudicá-los, visto que possuem a imunidade comprometida”, destaca o relatório com base nos dados coletados no HFB.

O almoxarifado possui situação inadequada para o armazenamento de produtos hospitalares, com fungos nas paredes e teto e um ambiente com temperatura elevada.

A Defensoria Pública da União quer que o início de novos tratamentos na unidade seja suspenso por três meses, para melhorar as condições para quem já está no sistema.

 

Novo alerta

Este não é o primeiro alerta da DPU e do Cremerj sobre os problemas no tratamento do câncer. Em 2016, foram fiscalizados 19 hospitais que ofereciam serviços oncológicos. Os dados já eram alarmantes. De todos os pacientes, 59% já entravam no sistema de saúde com a doença em estado avançado.

Na época, já alertavam para a redução da perspectiva de tratamento dos pacientes. Então, 46% sofriam alguma interrupção no tratamento por falta de condições. O Hospital Federal de Bonsucesso foi considerado como a pior unidade oncológica do país.

 

Números do Ministério da Saúde

Questionado sobre o decréscimo de vagas para o tratamento de câncer no Rio, o Departamento de Gestão Hospitalar do Ministério da Saúde (DGH) afirmou que, no 1º semestre de 2018, foram realizados um total de 14 mil atendimentos de pacientes com câncer nas suas três emergências no Rio de Janeiro (nos hospitais federais de Bonsucesso, Cardoso Fontes e Andaraí).

Ainda segundo o Ministério, dos 20 mil atendimentos gerais na emergência do Andaraí, 6 mil pacientes foram internados para tratamento de câncer na unidade – ou seja, 30% do total. Já no Hospital Federal de Bonsucesso, dos 7,6 mil atendimentos gerais de emergência, 3 mil foram oncológicos – ou seja, 40% dos pacientes. No Cardoso Fontes, dos 6 mil atendimentos gerais de emergência, 5 mil foram oncológicos – cerca de 80% dos pacientes.

O DGH diz também que já autorizou a liberação de 20 contratos para oncologia visando reforçar os serviços dessa especialidade nos hospitais federais. O órgão sustenta também que os hospitais federais estão capacitados a oferecer tratamento oncológico em conformidade com a portaria 140, que estabelece os critérios deste atendimento.

O Inca afirmou em nota que, com relação à cirurgia torácica, historicamente sempre houve mais vagas que pacientes, assim um número significativo de vagas não era ocupado. A redução reflete somente a adequação da oferta à demanda.

Com relação à lesão impalpável da mama: a oferta se manteve estável e o total de matrículas no HC III (Hospital do Câncer III) foi inclusive maior em 2017 frente a 2016.

Com relação às vagas para Tecido Ósseo e Conectivo, a oferta de vagas manteve-se estável, bem como o número de matrículas e cirurgias.

Com relação à Pediatria, os casos de leucemia são referenciados diretamente para internação hospitalar. Os casos ambulatorias, principalmente de tumores sólidos, têm livre acesso. Encontram-se em andamento as tratativas para incluir a Pediatria na Regulação Estadual.

O Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into) afirmou em nota que é referência em procedimentos de média e alta complexidade na área de ortopedia, traumatologia e reabilitação. Eles afirmam que a instituição não conta com atendimento oncológico e não trata clinicamente o câncer. Fazem cirurgias ortopédicas em caso de canceres ósseos, e que e atendimento não foi diminuído.

 

Com informações da G1 RJ, 15/08/2018

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